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Os portugueses que fizeram a nova Ásia

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Persiste, alimentada pelo fanado cliché do português “pobrete mas alegrete”, a ideia de que as comunidades portuguesas espalhadas um pouco por todo o mundo sempre integraram uma massa desclassificada de trabalhadores braçais, espécie de refugo de sobras e excedente demográfico atirado para os caminhos do exílio, atiçado pela fome e submetido às mais duras provações. É evidente que essa emigração existiu, mas surge como elemento de toda a evidência que foi exacerbada por um tipo específico de portugueses que inundaram o Canadá, os EUA, a África do Sul e a França nas décadas de 60 e 70 do século XX, não resistindo, porém, à acareação de uma investigação mais cuidada.

Na Ásia, o mito romântico do português aventureiro e sem eira, construído a partir de excepções, parece que só resiste na análise do tipo de português que demandou o pequeno enclave-bandel do Rio das Pérolas e o arquipélago do Havaí . Em Macau, o português foi sempre, do século XVI aos últimos dias da nossa presença, o homem de poucas letras, o embarcadiço, o polícia, o homem dos sete-ofícios em busca do alimento diário. No Havaí, foi trabalhador braçal nas plantações da cana-de-açúcar.

Contudo, ao longo dos séculos XIX e XX, de Xangai a Singapura, de Banguecoque a Calcutá, germinaram comunidades portuguesas ou luso-descendentes altamente qualificadas, urbanas, interventivas e com visibilidade política e cultural que cortam cerce com a proverbial auto-comiseração, falta de amor-próprio e demais tiques decadentistas que continuam a comprazer os nossos plumitivos. Não há dia em que não esbarre com a revelação do anti-mito do português bem sucedido, empreendedor, respeitado e requerido para funções que outros não sabiam executar. Do estudo que actualmente desenvolvo em torno do português asiático de meados do século XIX ao eclodir da Segunda Guerra, sobressai esse outro tipo: professores, médicos, advogados, músicos, comandantes de marinha, comerciantes, bancários, tradutores, quadros superiores empresariais e funcionários superiores dirigentes ao serviço dos governos coloniais britânicos, bem como conselheiros especiais contratados pelo governo siamês.
Sabiam os nossos leitores que no Sião de finais do século XIX, inundado por conselheiros britânicos, belgas, alemães, franceses e norte-americanos, trabalharam cerca de 80 portugueses em funções de topo, ou seja, 20% dos estrangeiros ao serviço do Estado, assessores de ministros e da casa real, comandantes de vasos da marinha siamesa, médicos na Cidade Interior (palácio), diplomatas, correctores, representantes comerciais das maiores companhias de seguros, despachantes oficiais, directores de estabelecimentos de ensino e até dirigentes de departamentos do Estado ? Sabia o leitor que alguns destes compatriotas nossos, nascidos em Portugal, Macau ou Hong Kong, filhos de portugueses, chegaram a ministros e depois ganharam nacionalidade siamesa ?

Sabia o nosso leitor que a companhia teatral de maior relevo na Singapura de inícios do século XX era a Portuguese Dramatic Amateur Co, que em Banguecoque funcionou em inícios do século XX uma Philharmonic Society quase inteiramente composta por músicos portugueses, que o coro português de Singapura, especializado em reportório mozartiano, era presença obrigatória na saison artística da Little China, que os professores e afinadores de pianos mais gabados de Singapura eram os Garcias ? É tempo de rever tudo o que se foi escrevendo disparatadamente sobre o “português errante”, uma rematada falsidade que não tem outra sustentabilidade que essa quase doentia tentação para nos agacharmos e pedirmos a protecção dos outros.

Miguel Castelo-Branco

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